quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

El português

Diz-se, di-lo quem viu na arquibancada da arena ou mesmo na poltrona da tevê, que os toureiros são mestres em equilibrar emoções entre medo e coragem e os únicos capazes da dramatização artística na hora da morte, na hora de matar o inimigo grandioso ao fim de um bailado de arroubos, sustos e suspiros. Só se lhes compara a imaginação criadora de esgrimistas máximos da expressão artística, esculápios das cores e das formas, das palavras e das histórias, do corpo e da alma, do conhecimento universal e da sabedoria ruminante das ruas. Aos homens comuns, em reconhecimento à arte natural, resta aplaudir toureiros, escritores, pintores, escultores, ou se recolherem ao desprezo da hipocrisia humanística. Mas não há nobre ou plebeu neste mundo de tantos deuses que não reconheça aos toureiros o espetáculo em nome da arte de matar.
O senhor José Saramago, português de nascimento, talvez ninguém tão português quanto ele, com sua óbvia constatação de que as aparências enganam porque são apenas aparências e de que nada no mundo faz sentido, nada, não adestra touros nem usa fantasias afogueadas nem chapeuzinhos nem espadas e nem dança em picadeiros à procura da consagração, mas é, mesmo sem sê-lo, o maior de todos os toureiros da atualidade.
O romance As Intermitências da Morte, quase dois anos após seu lançamento, ainda é, neste momento, o maior espetáculo da terra. Não há outro capaz de provocar tamanho deslumbramento. O único espetáculo a relatar, entre tantos concertos operísticos, performances luminosas, obras vanguardistas e touradas sanguinárias, sem a pretensão do conhecimento científico ou imaginário, o suposto encontro do homem com o maior enigma da humanidade. O livro representa uma nova coreografia da criatividade diante do mistério da própria criação. Talvez seja uma espécie de esboço da reinvenção da literatura.
Há duas fases distintas em As Intermitências da Morte que o estupefato leitor precisa observar e entender para melhor desfrutar desta incrível jornada da informação pelos caminhos da mais pura e emocionada ficção. A primeira fase, de apresentação e construção da história, move-se, aos sorrisos, entre considerações e revelações absolutamente incomuns de personagens e argumentos, sem protagonistas. Vai-se conhecer muito da realidade e ainda mais da imaginação. Na arena, seria um longo bailado de introdução, na música uma overture interminável e na literatura os movimentos preliminares de uma narrativa apoteótica.
A segunda e última fase, que obedece ao estilo clássico da criação literária, com o embate entre dois protagonistas em torno de uma idéia original, desvenda, desnuda, revela, anuncia o que antes ninguém jamais viu, ouviu, disse, cantou, dançou, pintou, moldou, escreveu ou viveu. A intensidade da narrativa só tem similar no volume sinfônico crescente do acorde final de cordas e metais e na imobilidade mortal do toureiro, na espada pairada no ar, no instante mágico que antecede o fim, qualquer fim, seja na arte ou no amor.
O espaço acabou. Faltou falar da Espanha, de Cervantes, da França, de Flaubert. Faltou explicar o El do Portugês do título, mas acho que todos entenderam. Leiam Saramago. Agora. Ah, o “diz-se, di-lo” genial aí de cima não é meu, claro, é dele. Como também é dele a frase que gostaria de ter a poscritar meu próximo romance, “alguém escreveu que cada um de nós por enquanto é a vida”. Só por enquanto.

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