domingo, 12 de abril de 2009

Ovo de elefante

Domingo de Páscoa. Dia de reverenciar fábula, bom dia para acordar pensando em literatura.
A arte, para quem luta para ser artista, tem graus de dificuldades quase insuperáveis para mãos e mentes apenas inspiradas, que não exibem talento vocacional mínimo exigido para matrícula nesta legítima escola de vida.
A pintura, por exemplo, tem várias chaves básicas para quem se imagina retratista. A mais conhecida é o desenho de mãos. Pintar dedos é um suplício invencível para a maioria dos aprendizes. Só grandes mestres –Velásquez, da Vinci, Rubens– pintaram mãos que até hoje se admira como se estivessem vivas. A maioria os pintores esconde as mãos napoleonicamente.
A literatura também tem chaves intransponíveis, que acabam delimitando o bom do mau escritor. A paisagem é a questão mais evidente. Como se sabe, ou pelo menos desde que José Saramago chamou atenção na primeira frase do Memorial do Convento, o que mais tem no mundo é paisagem, mas há pouquíssimas pessoas capazes de descrevê-las. Depois de Flaubert e García Márquez, o próprio Saramago é o mais habilitado, sem dúvida. Em seu último livro, a Viagem do Elefante, o velho intelectual comunista encontrou uma forma graciosa e genial para driblar a grande dificuldade técnica da literatura com um recurso de narrativa incontrolável para a maioria dos mortais: a digressão.
Então, como hoje é Páscoa, um presentinho de pura arte, dois pedaços de parágrafos escritos por alguém que sabe tudo, absolutamente tudo da arte de contar histórias. Deliciem-se. É melhor que chocolate:

A caravana está pronta para partir. Há um sentimento geral de apreensão, uma tensão indisfarçável, percebe-se que as pessoas não conseguem tirar da cabeça o Passo de Brenner e os seus perigos. E o cronista destes acontecimentos não tem pejo em confessar que teme não ser capaz de descrever o famoso desfiladeiro que mais adiante nos espera, ele que, já quando do Passo do Isarco, teve que disfarçar o melhor que podia sua insuficiência, divagando por matérias secundárias, talvez de alguma importância em si mesmas, mas fugindo claramente ao fundamental. Pena que no século dezesseis a fotografia ainda não tivesse sido inventada, porque então a solução seria facílima, bastaria inserir aqui algumas quantas imagens de época, sobretudo se captadas de helicóptero, e o leitor teria todos os motivos para considerar-se amplamente compensado e reconhecer o ingente esforço informativo da nossa redacção.
(...)
Diz-se que numa das línguas faladas pelos indígenas da América do Sul, talvez na Amazônia, existem mais de vinte expressões, umas vinte e sete, creio recordar, para designar a cor verde. Comparando com a pobreza de nosso vocabulário quanto a essa matéria, parecerá que devia ser fácil para eles descrever as florestas em que vivem, no meio de todos aqueles verdes minuciosos e diferenciados, apenas separados por subtis e quase inapreensíveis matizes. Não sabemos se alguma vez o tentaram e se ficaram satisfeitos com o resultado. O que, sim, sabemos, é que um monocromatismo qualquer, por exemplo, para não ir mais longe, o aparente branco absoluto dessas montanhas, também não decide a questão, talvez porque haja mais de vinte matizes de branco que o olho não pode perceber, mas cuja existência pressente. A verdade, se quisermos aceitá-la em toda sua crueza, é que, simplesmente, não é possível descrever uma paisagem com palavras. Ou melhor, ser possível, é, mas não vale a pena. Pergunto se vale a pena escrevermos a palavra montanha se não sabemos que nome se daria a montanha a si mesma. Já a pintura é outra coisa, é muito capaz de criar sobre a paleta vinte e sete tons de verde seus que escaparam à natureza, e alguns mais que não o parecem, e a isso, como compete, chamamos arte. Às árvores pintadas não caem as folhas.

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