segunda-feira, 16 de março de 2009

Gaveta virtual

Outro trecho de conto perdido na tal pastinha no Meus Documentos. É um parágrafo digressivo de uma história linear sobre pai e filho. Imagino que isto seja literatura. Saibam.

O senhor
Ramiro Pancho Ortives viveu a maior parte de sua vida com uma chave de fenda nas mãos, cansado da lida diária de uma oficina de carros velhos, de uma mulher chata que só sabia fazer sopinhas de verduras e nada entendia de assados, a comida que move o mundo, e de dois filhos como a maioria dos filhos de gente igual ele, e jamais imaginou que pudesse morrer tão cedo, com uma bala cravada no meio da barriga, como um segundo umbigo sangrento, os olhos esbugalhados para o fim de uma vida que foi pouco mais que uma pasmaceira de coisa nenhuma. Todo santo dia esperou que deus ou qualquer outra coisa acendesse uma luz nas trevas inexpugnáveis de sua cabeça, mas o máximo que conseguiu ver foi uma luzinha trêmula de vela de aniversário a iluminar de lampejos amarelos de alguns instantes que ele pensava terem sido da mais plena felicidade. O pior é ver o assassino escapar na maior tranqüilidade. Ninguém por perto. O barulho da chuva deve ter confundido o som do estampido do revólver. O homem que o matara por nada iria escapar, já tinha escapado. Quase não sentia dor, o problema maior é que não podia se mexer. A paralisia fatal que acomete todos os feridos de morte havia ocupado cada centímetro de seu corpo. Mas ainda podia ver e escutar e pensar. Uma mulher cantava uma música bonita e incompreensível no rádio. Round Midnigth. Ele não sabia uma palavra em inglês. Quer dizer, talvez uma dúzia e meia, mas não conseguia entender o que aquela voz, a voz de uma mulher negra, com certeza, dizia tão docemente, tão tragicamente verdadeiro. A melodia corria pelo teto varado de luz, a negra soltava as palavras como pássaros venenosos e ele não entendia nada, estava morrendo e não entendia nada. Morto por nada, por uma merda de pneu velho, morto por achar que tem coisa certa na vida e coisa errada, por achar que dois e dois são quatro, devem sempre ser quatro, apesar de um revólver apontado para sua barriga. Precisava ficar calmo, esperar pelo socorro, mas sabia que o pior estava por vir, era sempre assim, o pior chegava logo em seguida a alguma coisa muito ruim. É sempre assim na vida de gente como ele. Então sentiu uma dor no peito, o lado esquerdo inchando de dentro pra fora. Uma dor muito forte, grossa, constante. O pior chegava. Não bastava levar um tiro na barriga e ficar imobilizado no chão engraxado de uma oficina, não, não bastava, agora viria o ataque cardíaco. Puta que pariu. Um tiro na barriga e um ataque cardíaco. Puta que pariu. Tateou à procura da chave de fenda. Achou e empunhou como uma faca. Pensava em golpear o peito. Um haraquiri de chave de fenda. A dor tomava conta de tudo. Não podia mais pensar. Não conseguiria nem o haraquiri. Ainda bem que a mulher parou de cantar, ficou tudo em silêncio. Afinal, ele estava morto, estirado no chão, a chave de fenda crispada na mão direita. Pai e filho entraram na oficina, quer dizer, nem entraram, pararam na porta alguns instantes depois do crime. Quando se viraram para sair, um carro de Polícia estacionou bem na frente do galpão, obstruindo a passagem.

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