sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade III

Segue nosso vibrante folhetim sobre o coronelismo político nacional.

Capítulo três

Bebeu o cafezinho, ou melhor, deu dois golinhos e mastigou um biscoitinho de polvilho amanteigado, meio sorriso debaixo do bigodinho fino, a conversa precisava mudar de rumo, rápido. Dinheiro e imagem não são assunto para público, por mais interno que seja. Mais tarde, dali a pouco, falaria com os dois responsáveis, em separado. Assunto não faltava, só não carecia de platéia. Os demais, sim, significavam conversa sobre voto. Isso servia para público interno. Mantinha-os sob pressão, eles só funcionavam sob pressão. O dono dos políticos, o dono da Imprensa, o cara dos cabos, todos eles só funcionavam empurrados, aos trancos.
Sabia que em cinco minutos de relógio, como se diz na boa terra, tomaria conhecimento de tudo, absolutamente tudo. Borrifou o cubano no salão rococó da primeira-dama e dedicou-se a ouvir uma ou outra ponderação lógica, uma denúncia de traição, um sugestão de traição, um plano sinistro, uma revelação íntima dos inimigos, o diz-que-diz normal em reunião de campanha, mas a cabeça ainda ligada na arrecadação e no marketing:
- Muito bem, vamos dar um freio de arrumação.
Virou-se para a moça e perguntou “o que temos aí”. A moça que servia cheiros íntimos e cafezinho controlava a agenda real, não aquela folhinha de padaria exposta na assessoria de comunicação para jornal ver, mas a que acontecia de fato. E anunciou um dia peso pesado, um dia que só profissionais de primeiro time podem provocar e aguentar. A linguagem, sempre meio cifrada, criada para dar idéia de algo confidencial, quase secreto, não chegava a comprometer o entendimento:
- Reunião fechada até 10 e 15. Aberta até 10 e 45 e geral até 11 e 30. Coletiva com Imprensa local rápida, almoço antes do meio-dia. Uma hora no aeroporto, duas horas no alto sertão. Meia hora fechada, meia hora aberta e 20 minutos de palanque. Avião pro outro lado do rio, quinze fechada, 15 aberta e 10 de palanque. Avião de volta pro alto sertão, camionete aberta e três Prefeituras até as seis. De volta à capital, coletiva no aeroporto com a nacional às sete. Isso não pode atrasar, dois canais ao vivo. Depois, jantar fechado na governadoria, descanso 10, repasse noticiário e uma hora de telefone. Gravação comercial tevê às 10, reunião fechada às 11, aparição na festa do Parque de Exposições, telefone a meia-noite, depois debate ao vivo, emissora da casa. É isso.
O coronel retrucou:
- É muito tempo pra geral daqui a pouco. Quero falar com nosso bravo governador, onde anda esta simpatia? Camionete aberta é o cacete. Querem que eu coma poeira? E nada de conversa no parque. Vou estar muito cansado e não quero conversa com corno nenhum. E isso vale para vocês todos, não me arranjem conversa fiada!
Todos riram, mas sabiam que era ordem séria, ninguém se atreveria a não cumprir. A moça sabia que não podia fazer nada quanto à reunião geral, havia centenas de excelsos representantes da sociedade local se acotovelando no salão de recepções, louquinhos para beijar mão, jurar fidelidade eterna e pedir favores ao maior homem do mundo, e graças a deus ela não iria nessa excursão relâmpago aos confins do Estado, portanto nada mais tinha fazer, a não ser esperar o fim da reunião fechada, e chegar para perto da mesa de novo, sem ele chamar, como se ninguém estivesse vendo, e encostar discretamente a perna na cadeira do coronel para que ele passasse outra vez a mão pela perna dela, acariciasse o joelho, coçasse sem pressa o tornozelo, a moça, claro, gostava, todos gostavam, e o coronel borrifava prazer num cubano legítimo, não há reunião política séria sem um toque de libidinagem. E, claro, todos ali eram profissionais de fazer a vida.
O senhor do cerimonial pediu licença para fazer entrar o pessoal da reunião aberta, deputados, prefeitos e lideranças do interior. O coronel retirou a mão do tornozelo delicado e consentiu com um aceno de cabeça. O rapaz do marketing e o dono da Imprensa aproveitaram para alegar compromissos fundamentais e pedir licença para o tradicional “vou ali e volto logo”. Outro aceno de cabeça e estavam liberados. O marqueteiro sabia que teria uma exclusiva antes do embarque pro sertão, saiu depois de jogar o joguinho de gestos imperceptíveis e piscadelas e arqueadas de sobrancelhas que só os muito idiotas e os políticos profissionais conhecem.
Lá fora, nos jardins que serviam de estacionamento aos visitantes do palácio do Governo estadual, o jovem marqueteiro e o veterano jornalista conversaram rápido, mal tinham tempo para respirar. Um iria para o motel com uma jovem e promissora estagiária, outro tentaria resgatar uma comissão borrachuda, ou seja, um cheque sem fundo indevido, duas transgressões morais que se o chefe soubesse eles não apenas veriam a vaca tossir como teriam que dar calmante. O marqueteiro não queria conversa séria, jogou logo um assuntozinho sem importância para distrair a avidez do jornalista por informações:
- Que negócio é esse de freio de arrumação?
- Você não sabe? É expressão de motorista de ônibus. Quando o ônibus está muito cheio, com gente saindo pelas janelas, eles dão um pisão no freio pro povo se ajeitar. É como fazem os caminhoneiros que transportam gado.
- Ah... O velho é esperto, não é?
- Outra coisa, o que você acha desse negócio do partido, essa história de brecar a candidatura? Dizem que a decisão sai hoje.
- Não sei de nada. Isso é política, não me interessa.
O veterano jornalista insistiu, queria papo:
- Os sindicatos estão armando pra hoje à tarde. Acho que vocês deviam dar um pulo lá...
- Isso é militância política partidária. Interessa menos ainda.
O marqueteiro riu, ligou o carro, subiu o vidro pro ar-condicionado gelar legal e arrancou devagarinho o Audi A8 de 75 mil dólares cash. Cada um por si, essa é a lei desses mosqueteiros de aluguel. O veterano jornalista só não ficou falando sozinho porque calou a boca. Subiu no Vectra aromatizado com perfume de shopping e também saiu devagar, pensando num jeito de ganhar muita grana sem ninguém ficar sabendo, o velho golpe que jamais deu certo mas que ainda fascina as mentes mais limitadas que tangenciam os círculos do poder.

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