quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade IX

A luta continua...

Capítulo nove

A morena dos olhos d’água tirou seus olhos do mar e correu a vista no quarto amarfanhado à procura da bolsa, com os seus cartões de crédito, o seu 24 quilates, o seu punhado de dólares, o seu tudo, tudo, à procura da noite anterior, a procura de um mínimo de razão, onde estou, com quem? Escancarou a cortina sobre a baía, a grande baía verde azul iluminada, os raios de sol das quatro da tarde como o novo dia, a memória ajeitando as fotos de ontem, quase tudo pronto para amanhecer e dar um jeito de sair às pressas, para o sítio, às pressas, que horas são essas, onde está meu anel? Em alguns minutos, um gole de gim, calçando sapatos aos pulinhos na frente do elevador, a morena dos olhos d’água voltava à personagem, a vamp milionária que alimentava os sonhos de todo staf do maior homem do mundo. A estampa de grife encobria a vulgaridade. Vamp. Quem diria? Se o velho chega primeiro, tô fodida. Donde está el elevadoroooorrrr? Mutcho bién. Lá se vamos.
O BMW balança sua tonelada de ferro pelas curvas do asfalto como uma lancha ziguezagueando um riacho, um riachuelo. O dia quase sempre é nada, mas agora é tudo. Tantos detalhes a cumprir. Tão pouco tempo. Quase tudo por fazer. O BMW parece que ruge vez em quando. Essa merda de sítio é longe demais. Se ele chegar primeiro, tô fodida. Eu tenho que estar cansadinha de tanto esperar. Furiosa, briguenta, se eu não fizer isso, ele não gosta. Não quer pensar em mim, não precisa pensar em mim, melhor me mandar pra porra e fim de papo, lá vem outra vamp, outra loirona vestida de preta, ou morenona vestida de azul marinho, tanto faz, não quero nem saber, tenho que fazer direitinho, tempo que faturar essa, vou chegar, vou chegar.
Chegou. Ninguém em casa. Ótimo. Só a segurança. Dois sujeitos mal-encarados. Mutcho bién. Esses não têm problema, jamais falam com o chefe. Está tudo certo, agora é só ficar cansadinha de tanto esperar, na varanda, fumo-ar. Mal acomodou sua carne durinha na poltrona de couro negro, ouviu o barulho de um motor e em seguida viu o carro frio usado pelo chefe para escapulidas fora do programa oficial. A vamp porteña armou seu biquinho de muxoxo e ajeitou o decote para insinuar meio peito e cruzou as coxas exatas de tal maneira que faria salivar até um cego broxa. O chefe desceu rápido, sacou o paletó com dois puxões e foi se acomodar na varanda. A casa ficou vazia no segundo seguinte. A vamp matreira reclamou da espera, disse que era una mujer abandonada, solita, muy triste, e soltou o nó da gravata do chefe como se seus dedos fossem de pluma e deu uma bicotinha, só uma, na testa alva e suada do velho cacique poderoso, mas foi o suficiente para ser arrebatada pelos braços gordos e mordida e sugada e lambida por aquela boca ávida de vida, como um vampiro esfomeado.
Alguns minutos depois, o chefe jazia satisfeito na enorme cama redonda com colchão de água e coberta de cetim rosa e rodeada de jasmins e cravos. Parecia ressonar de um porre homérico. Roncava como se tivesse tomado sozinho uma garrafa de vodca em dez minutos, imagem que na verdade estava muito próxima da realidade. A vamp demorou mais tempo no banho do que em cima da cama. Quando o chefe acordou, quase na hora do Jornal Nacional, ela já tinha posto a mesa com salmão no molho de alcaparra e cubinhos de abacaxi ladeado por uma Chandon tão legítima quanto a luxúria. Ele tomou uma ducha rápida, se refez com alfazema, vestiu-se em poucos minutos, engoliu dois únicos pedacinhos do peixe gelado e uma taça de champanhe e saiu como entrou, sem dizer uma palavra. Ela também ficou em silêncio, apenas conferiu com o rabo dos olhos lindos a folha do cheque deixada displicentemente sobre a mesinha de cabeceira. O resto da noite ela dividiu entre os dois seguranças que amanheceram com tanta culpa que ameaçaram se matar um ao outro depois que o BMW saiu roncando portão afora.
O cheque emitido por uma empresa de construção tinha cinco agradáveis e surpreendentes dígitos. Estava a cada dia mais rica, mas não possuía nada que pudesse provar a relação com o homem mais poderoso do Estado. Sabia que não podia ousar uma gravação, em fita ou vídeo, pois se fosse descoberta seria uma vamp morta, com certeza. Precisava de um documento, um documento que pudesse guardar e usar na hora propícia, no auge da campanha eleitoral. Numa sinaleira da grande avenida em direção ao centro da cidade, paquerada por um velho descarado numa camioneta caindo aos pedaços, lembrou-se do sêmem. Estava cheia, claro, mas de uma mistura surreal que ía desde o príncipe encantado de duas noites atrás até o esperma ralinho do chefe e os borbotões de atraso dos dois seguranças. Um coquetel de porra que nem o maior instituto do mundo saberia identificar as procedências. E sêmem envolvia laboratório, exame clínico, o caralho a quatro, como dizem suas amiguinhas e amiguinhos acostumados ao jogo da chantagem sentimental com os poderosos eventualmente desequilibrados pelo prazer barato do sexo. Uma folha de cheque seria perfeita, mas o coronel jamais cometeria erro semelhante. Estacionou defronte ao edifício de classe média com a desconfortável sensação de que algo não ia bem, embora não soubesse o quê. Entrou no apartamento, tirou a roupa e foi deitar na rede esticada no pequeno terraço da sala sem tomar banho. Nua, adormeceu pensando em morte.

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