quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade VII

Segue a trilha da trama

Capítulo sete

A oposição estava mais e melhor organizada deste outro lado do rio. Havia a pastoral, a comunidade indígena, um sindicato rural bem estruturado e dois veteranos líderes comunistas intransigentes, acostumados a radicalismo inócuos, gente que não acreditava no fim do socialismo soviético e nem muito menos que o homem houvesse realmente chegado à lua. O coronel, claro, conhecia um por um dos desafetos. E se não conhecesse poderia inventar virtudes e defeitos, traços de caráter, currículo, folclore, apelidos, o que quisesse. Tinha a ficha real e imaginária de cada um. Sabia até as preferências sexuais e esportivas dos opositores inúteis. Enquanto o chefe da segurança providenciava o sanitário digno da grande bunda oficial, ele, bem humorado, sabe-se lá porquê, comentou com o companheiro de sempre que se aquele homem que sobrevoou o sambódromo aparecesse de repente o povo o receberia como santo milagreiro. O companheiro completou “e se o teste com o patinete a hidrogênio fosse aqui”? Os dois desceram do jato rindo, alegres com a inocência alheia. Os senhores e senhoras bem vestidos do sertão tinham os mesmos interesses pecuniários de qualquer cidadão do planeta que se aproxime dos círculos do poder. Tudo ocorreu como previam. O coronel achou o sanitário decente, no gabinete do prefeito, o povo carregou o visitante poderoso como se carregam jogadores de futebol campeões do mundo, os opositores foram mantidos à distância adequada como cães raivosos, e o coronel soltou seus peidos marcando compasso entre uma marchinha e outra da banda de quermese sem que ninguém soubesse de onde vinha o mau cheiro. Dos 30 minutos em terra, 15 foram gastos no banheiro, dez indo e vindo e cinco num discurso furioso que o povo não entendeu direito. No embarque, a multidão decepcionada com a rapidez da visita, um bêbado gritou “fora, peidorreiro!”, eles fizeram que não ouviram e fecharam a porta do jato. Lá dentro, observando pela janela o povo se dispersando antes mesmo da decolagem, o coronel vaticinou com sua sabedoria política incontestável:
- A oposição vai ganhar aqui. Corte todas as verbas, paralise todas as obras, deixe eles à mingua.
O companheiro de sempre consentiu com um sorrisinho murcho, afinal, cortar que verba, paralisar que obra, o povo do sertão sempre viveu à mingua.
Continuando o roteiro oficial desse lado do rio, depois de breves minutos sobre o grande nada rasgado ao meio por um risco de água, a camionete cortava o sertão como uma moto-serra decepa as grandes árvores da mata atlântica. O som é quase o mesmo, e o efeito, nesse caso, também. O coronel admirava a paisagem, não porque gostasse de olhar o nada, mas porque assim passava idéia de que tinha pelo menos algum envolvimento emocional com aquele lugar miserável e principalmente porque não precisava conversar com os caroneiros puxa-sacos. Além dos cactus e dos mandacarus, um ou outro arbusto verde na paisagem avermelhada pela inclemência do sol, um jegue pastando pedra, um lavrador capinando terra seca, coisas e vidas sem valor para um homem acostumado a pisotear corações e mentes em busca de poder. O tempo do rush pelo sertão calcinado foi cumprido com precisão britânica. A viagem estava acabando, precisava de uma vítima incauta para oferecer aos deus do voto. “Quem é que vai para a pira dos inocentes”?, perguntou brincando a sério para o companheiro de sempre.
Pouco antes de levantar vôo do alto sertão, na última audiência relâmpago que concedia aos correligionários, descobriu a vítima ideal. Um senhor baixote, gordinho, suarento, responsável pelas obras públicas no município, um dos mais antigos colaboradores do seu grupo político. O baixote contou, baixinho, ao pé do ouvido, que a tubulação encomendada, e regiamente paga, para materializar a velha promessa de irrigação, não chegava nunca, era preciso alguma providência, parece que haviam desviado a verba. O maior homem do mundo ouviu sem fazer qualquer comentário, a cabeça malvada elaborando a saída triunfal. Instantes depois, na porta do avião, com a reduzida comitiva devidamente afivelada aos assentos, iniciou um rápido, cruel e explosivo discurso para os tímidos padrões políticos do lugar. Começou com seu tema preferido, a moralidade pública, e em seguida passou a desancar os corruptos, os aproveitadores da miséria alheia, os oportunistas eleitorais, como se jamais se houvesse olhado no espelho, para enfim denunciar o desaparecimento de todo o equipamento de irrigação que havia destinado ao alto sertão, apontando um dedo acusador para o baixote, a esta altura suando mais que uma galinha no espeto, pasmado pelo descaramento do grande líder. “Não admito corruptos junto de mim. O senhor prefeito tem que demitir já! O poder é do povo!”, concluiu virando-se para desaparecer dentro do avião sob a ovação popular. Até o baixote aplaudiu, estupefato, de boca aberta, como alguém podia ser tão canalha? O coronel acabara de trocar uma velha fidelidade política por um punhado de votos que não mudaria um dígito no percentual total da apuração. Quando o jato estabilizou a quatro mil pés no rumo do aeroporto internacional da capital do Estado, ele comentou com o companheiro de sempre:
- Aquele menino do marketing fala em bandeiras de consciência... Ele não sabe o que é política.

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