segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade V

E vamos nós...

Capítulo cinco

A chamada Imprensa local não teve a coletiva esperada, mas pôde perguntar suas obviedades pautadas por telefone na hora em que o coronel saía do palácio para ir ao aeroporto. Ele respondeu aos jornalistas com frases soltas sem se importar com as perguntas, andando devagar o curtíssimo trajeto de 10 metros entre a varanda do palácio e a porta do carro oficial, gestos e discurso ensaiados de cabeça. “Eu não sou homem de meias palavras”, “eu só faço o que o povo quer que eu faça”, “política é coisa séria”, “não faço acordo com remendeiros de orçamento”. Entrou no carro e bateu a porta com firmeza, como se estivesse com raiva. O companheiro de sempre já estava acomodado no banco, “remendeiros de orçamento, taí... gostei dessa”. Os dois riram, o carro havia arrancado, os jornalistas nem viram. Acharam que a entrevista tinha sido quente, iria render para os jornais da noite. Duas entrevistinhas para retrancar o assunto, pronto, dia ganho.
O coronel não era homem de esquecer cara ou compromisso. Mal o carro começou a voar baixo pela grande avenida até o aeroporto, ele perguntou pelo marqueteiro, “cadê o menino?” Embora não fosse viajar, o rapaz já estava sentado a bordo do jato, esperando tranqüilo, uma cena digna de um bom profissional. O coronel, claro, gostou da surpresa. Mandou que os pilotos descessem do avião, queria ficar absolutamente só com o rapaz. Até o companheiro de sempre ficou do lado de fora, olhando o chão da pista como uma criança de castigo. O segredo é a alma do negócio. O negócio, mais do que nunca, é política. E política é imagem. Vale o que se representa. Quem escreve política projeta imagem. Quem constrói imagem projeta política. As funções se confundem num mesmo homem. E para a razão de resultados do coronel, ninguém precisa saber disso.
Conversaram 10 minutos no Learjet. A questão principal era a dissidência inoportuna dos remendeiros. Estes sabiam que era hora de negociar emendas ao orçamento. O coronel influenciava, decidia, queria negociar só depois das eleições. Os remendeiros sabiam que depois das eleições a conversa endurecia, na verdade, nem haveria conversa, a caneta oficial só se mexeria a favor dos empreendimentos do grupo interno, o pessoal de apoio continuaria pessoal de apoio, afinal nunca se viu mulas viajando na boléia. Os dissidentes criaram o impasse político, e público, porque nada tinham a perder. O caso ganhava destaque nos noticiários da noite, urgia uma decisão. O rapaz do marketing sugeriu endurecimento, é preciso caminhar sempre para frente, o coronel deveria apostar no rompimento agradecendo a deus por livrá-lo dos oportunistas, só lamentando o fato de não ter tido tempo para expulsá-los do partido, esse era o único jeito de reverter o impasse, fortaleceria a imagem de candidato determinado perante a opinião pública. O coronel gostou da sugestão, chamou seu companheiro de sempre e deu ordens para que as emissoras da casa trabalhassem imediatamente o novo posicionamento político. No minuto seguinte, as turbinas do jato foram ligadas. Os outros temas foram esgrimados em minutos. O rapaz tentou vender seu peixinho mais brilhante, pelo menos para seu público interno, a cobertura das bandeiras de consciência. Metralhou em seu linguajar exato e desconfortável de mestrado e phd que era necessário arejar pelos canais oficiais as relações com entidades de defesa de direitos, pega bem, não dá voto, mas lustra imagem. O coronel não gostou:
- Quem leva lustro é sapato velho. Não sou homem de lustros. Sou tosco, sou um boi brabo.
O rapaz sorriu o desconforto e tentou argumentar com o enfraquecimento do adversário na medida em que eles capturassem as bandeiras. O coronel cortou o assunto pela raiz:
- Não vou dar boa vida a ong nenhuma! Não quero saber de gente que defende viado e jacaré! Agora você já pode ir. Nos falamos à noite, na gravação do comercial.
O rapaz desceu do jato com ar de derrota, para satisfação visível do companheiro de sempre, apesar de ter acabado de sugerir a solução para um problema sério como o dos remendeiros. Mas não ficou chateado com isso. Ao contrário, sabia que havia contabilizado mais crédito naquela alma ingrata.
O homem da arrecadação chegou quando o Learjet começava a taxiar. Mal cumprimentou o marqueteiro, este se afastava a pé em direção aos hangares particulares, não queria que o chefe visse seu novo carro, poderia parecer ostentação. O homem da arrecadação segurou um chapéu imaginário, meio curvado diante do tufão que o jato parecia estar construindo em torno de si, até que foi puxado para dentro da aeronave pelo companheiro de sempre. A bordo, além dos dois políticos, dois capitães do serviço de inteligência, o coronel da segurança, um assessor para carregar as pastas, o homem da arrecadação e os dois pilotos. Em menos de três minutos de relógio já não se via o jato no chão nem no ar, havia sumido no céu despejado do início da tarde. Tempo é dinheiro.
O coronel ouviu a longa peroração do homem da arrecadação olhando fixo nos olhos dele, mas pensando em outras coisas, cada vez mais atormentado por seus medos íntimos, o insuspeitado fato político que poderia vir à tona a qualquer momento e virar a cabeça da opinião pública, virar pelo avesso a farsa tênue que mal encobre a realidade manipulada dos noticários. Não se interessava de verdade pelo homem da arrecadação. Este arrecadava como um cobrador de tributos obrigatórios. Ele, sim, arrecadava o principal, o que não ia para as contas do tribunal, o que tinha asas para atravessar o oceano e se aninhar num condescendente cofre no alto das montanhas geladas. Só ele negociava o que interessava só a ele. O dinheiro para comprar votos, fabricar notícias e bordar imagem viria do homem da arrecadação, dinheiro que servia apenas para conhecimento público. O homem que ajeitava de dez em dez segundos um chapéu imaginário, num gesto neurótico decifrável até por uma cartomante com mínimos dotes psicanalíticos, desfiou uma lista de colaboradores renitentes que ia desde uma milionária indústria química até um avarento distribuidor de cimento para construção civil e uma promissora rede de farmácias populares. O dinheiro arrecadado até então, pouco mais de cinco milhões de reais, mal tapava as cáries da boca draconiana dos cabos eleitorais. Só se ganha eleição para Governo de Estado com uma montanha de dinheiro e mais 50 milhões de dólares. Por mais que jogassem com as ordens de serviço assinadas à última hora pelo governador e o material para doações comunitárias, como veículos, equipamentos médico-hospitalares, quilômetros e mais quilômetros de tubulação para irrigação, saneamento básico, calçamento, asfalto, eletrificação rural e outros instrumentos de poder menos custosos, mas tão efetivos quanto esses, como cadeiras de rodas, máquinas de costura, utensílios agrícolas, sapatos, óculos e até dentaduras postiças, precisavam de um suporte bancário imediato. A conversa do arrecadador enojou o coronel, só gostava de ouvir soluções, não problemas. Resolveu dormir os 20 minutos que restavam de viagem até o alto sertão. Alguns amadores imaginam que candidatos têm grandes depósitos de quinquilharias para corromper eleitores. Não é bem assim, uma boa conta corrente bem administrada resolve tudo. Ele, por exemplo, jamais colocaria a mão no bolso por uma eleição. Poderia comprar ações de uma montadora automobilística asiática, mas não pagaria uma caixa de mercúrio cromo para um hospital público. O companheiro de sempre deu as ordens necessárias e fez as ameaças costumeiras para concluir a reunião aérea. O coronel roncava quando o jato tocou no chão, cinco minutos antes do horário previsto.

Um comentário:

Anônimo disse...

remendeiros de orçamento é impagável.