terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade VI

Nas asas da imaginação...

Capítulo seis

As formiguinhas que vistas lá do alto cintilavam ao sol na cabeceira da pista agora eram uma multidão de sorrisos esperançosos recepcionando o jato como uma nave espacial que lhes trouxera o enviado direto de deus. E foi como o redentor, o pai de todos, o salvador da pátria, que o coronel apareceu na porta do Learjet com um sorriso pastoral e os braços abertos, interpretando com gosto o papel de bondoso justiceiro que inventara para si mesmo. A multidão o carregou em êxtase, sem deixar que tocasse os pés no chão, até o palanque montado no início da estrada que sempre levou a lugar algum, mas que eles tinham esperança de que um dia pelo menos pudessem seguir rumo ao nada em um asfalto novinho em folha. O trajeto do campo de pouso à estrada, passando pelo meio da cidade, deu o mote para o discurso improvisado. Observador criterioso, caricaturou o perfil do lugar sem precisar trocar uma palavra com ninguém, apesar de ter-se dado conta, nos braços do povo, que não sabia onde estava nem com quem iria falar. Procurou pelas anotações e percebeu que não havia trazido anotação alguma. Uma falha imperdoável da moça da agenda, mas o que é um touro a mais para um toureiro mestre da esquiva? A falta de infra-estrutura dos serviços públicos era visível, a de uma vocação econômica também, não havia uma pracinha sequer que pudesse ser apontada como local de lazer, aquele lugar, sem dúvida, jazia em algum ponto obscuro entre a morte e o inferno. O terminal de ônibus parecia ter uma placa Rodoviária Municipal do Purgatório. O alto sertão não tinha nada, faltava tudo, isso alegrou ainda mais o coração perverso do coronel. Quando os puxa-sacos o depositaram no arremedo de palanque já tinha o discurso demagógico na ponta da língua.
Enquanto o maior homem do mundo fazia os ingênuos sonhar com suas mentiras cabeludas, dona senhora, viúva do mais antigo funcionário do minúsculo “escritório avançado do programa de emergências do Governo do Estado”, dava os últimos retoques na arrumação da casinha modesta para receber a visita ilustre que o prefeito havia prometido. Ela perdera o marido há poucas semanas por falta de cuidados médicos e não sabia direito, claro, o que pensar da vida. Mas ainda acreditava nos homens. Acreditava tanto que cozinhou tudo de bom que restava na casa para agradar ao visitante. Colheu, descascou e levou ao fogo as duas abobrinhas que restavam no quintal. Mexeu com paciência e gosto, misturando o último quilo de açúcar aos seus temperinhos secretos. Varreu pela milésima vez o soalho da sala encerrado com graxa de porco, cera caseira que dá um brilho bonito, mas solta um cheiro insuportável em dia de chuva, e como o sol esturricava o sertão, ela nem se preocupou com o fedor. Espanou o São Jorge, acendeu uma vela novinha em folha, alinhou a renda alva em cima da mesinha de centro, e poliu os bibelôs sobreviventes de um fausto tão antigo quanto a mentira. Antes de banhar-se inteira com uma jarra de água de cheiro e vestir a chita escura das enlutadas, ajeitou pela última vez com carinho e rezas sussurradas o velho quadro de Jesus Cristo com coração gotejando sangue. Afinal, estava pronta, a casa virara um santuário à pobreza resignada dos sertanejos. Recostou-se à soleira da porta e ficou escutando a algazarra dos puxa-sacos ao longe.
O coronel não admita mudanças de itinerários nessas visitas relâmpagos aos eleitores, mas abriu uma exceção porque fora o primeiro pedido do prefeito, no palanque, e esse nunca se deve recusar, pois serve como sinal de boa vontade e também como pretexto para rejeitar todos os outros. De novo nos braços do povo, lá foi ele sorrindo de satisfação, acenando para velhos, mulheres, crianças, até para os bichos, os cactus e a poeira amarela que costuma cobrir todos os lugares do fim do mundo. O carregador de pasta parecia sufocado pela malta de pedintes e o companheiro de sempre dava nítida impressão que poderia sacar da arma a qualquer momento, enquanto os policiais cumpriam seu ofício, olho espichado para a meia dúzia de opositores exibindo uma faixa com um inútil “não à corrupção”, secundados por um trio de zabumba, pandeiro e pífaro porque os caras do triângulo e da sanfona se recusaram a fazer barulho contra a visita do coronel. Desembarcaram-no diante da casinha da viúva, a velha senhora tremendo de emoção na soleira da porta. Cochichou alguma coisa no ouvido do prefeito de tal maneira que nem este entendeu e depois se dirigiu à viúva “como vai essa senhora que já foi a mulher mais bonita do sertão”? A pergunta calhorda alvoroçou o coração da tímida anfitriã e alegrou os puxa-sacos.
Respirou fundo antes de entrar, mas não evitou o embrulho no estômago. O perfume da água de cheiro e o suave aroma de pureza e simplicidade da senhora perturbaram sua segurança de político profissional. Os quadros religiosos, a folhinha com o retrato de uma criança numa plantação de trigo, o brilho da limpeza no paneleiro bem areado, o trilho de sisal trançado espichado da sala à cozinha como se fosse um tapete de verdade, as rendinhas brancas penduradas aqui e ali, os bibelôs brancos, o cesto de frutas de quintal e uma caneca de louça, apenas uma, a única da casa, em cima da mesa, ladeada por garfo, faca e colherinha, um açucareiro de vidro e centenas de olhos indulgentes à espera de uma palavra sua. Apertou a senhora contra o peito, todos pensaram que ele estava emocionado, mas apenas tentava conter a ânsia de vômito. Sempre sentia-se mal quando se deparava com a dignidade. Odiava os pobres remediados, os pobres que varrem a casa, que colocam flores na sala, que se dizem conformados com os desígnios de deus. Esse tipo de gente é voto certo no sistema, o voto de oposição está nas salas de aula, nos galpões de fábricas, nos barracos fétidos das invasões ribeirinhas. Ele preferia enfrentar a suposta consciência politizada de professores e operários e a burrice absoluta dos excluídos do que se deparar com a pureza de um par de olhos cheio de esperança na vida. Fingiu-se de profundamente emocionado para recusar o docinho de abóbora e saiu às pressas, como se estivesse quase chorando, o companheiro de sempre entendeu a manobra e organizou aos gritos a rápida volta ao avião. A ida à casa da senhora viúva, afinal, rendera coisa alguma.

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