sábado, 7 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade IV

Segue o baile.

Capítulo quatro

O governador chegou estrepitoso demais para o gosto do coronel por deferências e gentilezas. O governador estava excitado e queria fazer confidências, mas o governador de verdade o conteve pelo braço e continuou no meio do salão regendo com sorrisos a balbúrdia absoluta de uma reunião geral em plena campanha eleitoral. O governador eleito podia ser o dono legal da casa, mas o dono de fato era o coronel e todos ali precisavam ter isso bem claro, embora a demonstração nem fosse necessária. Prefeitos, vereadores, deputados, oportunistas que se autos titulavam lideranças políticas regionais, chefes de polícia, padres, empresários, tabeliões, educadores, pastores, artistas, músicos de ocasião e a mais fina nata da picaretagem social, a maioria matriculada no fichário da Secretaria de Segurança Pública, sabiam muito bem quem era o chefe e rodopiavam como inacreditáveis galinhas bem comportadas à espera do instante de serem bicadas pelo único e poderoso galo que valia a pena em terra de cornos e puxa-sacos.
O governador falava por sobre o ombro do coronel como se balbuciasse um tema de fundo para conchavos segredados em público, enquanto este ouvia lamentos infundados e pedidos descarados dos mais legítimos representantes da sociedade local, pedidos suplicados como coisas fundamentais para o equilíbrio de forças políticas, mas que o chefe bem sabia ser apenas tentativa de chantagem, o jeito que aquele bando de safados entendia como mais eficaz para fazer política. O governador aproveitou a agonia da reunião geral para anunciar ao pé do ouvido do coronel o perigo da manifestação dos sindicatos dali a pouco e também para alardear a cisão partidária insinuando que sabia algo muito importante sobre um dos deputados dissidentes e para revelar que a grande obra de rede esgoto jamais ficaria pronta antes da eleição e para enfim denunciar como novo o velho atraso sistemático na liberação de verbas pelo Governo Federal. O coronel se manteve impassível, acostumado a rebater com o silêncio tudo que não podia resolver, sorriso cordial, uma ou outra risadinha, um bom tapa no peito esquerdo do interlocutor, tudo de acordo com o jogo de cena que eles entendiam e adoravam, até que resolveu falar a todos de uma só vez depois de se desvencilhar do governador e dos papagaios de pirata com um rodopio de braços abertos:
- Muito bem, muito bem. Já ouvi demais! É tudo justo e merecido... Basta fazer a coisa certa que serão atendidos. Mas precisamos de voto. Agora, o que interessa é voto! Vamos encher o rabo desse povo de voto!
O pessoal adorou, os mais imbecis aplaudiram, criara-se o clima ideal para ele tirar todos de cena com um golpe de mestre, um golpe de raposa cruel:
- Agora chega. Estou com fome, vou almoçar. Vocês querem almoçar comigo?
Virou-se e se dirigiu ao salão de largas portas de vidro através das quais podia-se ver a mesa posta para um rei. Este momento significava o grande teste de competência para o senhor do cerimonial. Só o governador, a primeira-dama e os senhores da reunião fechada podiam entrar no salão de jantar. Os seguranças tiveram extremo trabalho para deter os convidados da reunião geral. Estes forçavam a entrada na marra, como escravos esfomeados, estudantes de passeata, torcedores de futebol. Os seguranças chegaram a sacar os revólveres. Barraram empresários capitalizados, um cardeal, funcionários graduados, um ex-governador, um general de exército, coronéis fardados e a paisano, prefeitos poderosos, e magníficas mulheres desesperadas. Lá dentro, depois do vidro intransponível, o coronel e seus poucos escolhidos se deliciavam com a hipnótica breguice da cascata de camarões, as frutas que pareciam saídas de um Rafael de folhinha, as garrafas de vinho que todos sabiam francesas, manjares alvos, fios de ovos, os queijos, os frios, os licores, os sorvetes, os cremes de chocolate e o chantilly abundante. Duas crianças vestidas para uma cerimônia de catecismo entraram de repente pela porta interna, cumprimentaram o maior homem do mundo, agora protegido por um babador rendado, ganharam beijinhos e afagos carinhosos e por isso foram vistas pelos que estavam do outro lado da porta de vidro como netos do chefe, o que quase causou um tumulto de proporções inimagináveis no momento em que as crianças tiveram a infeliz idéia de usar a liberdade de donos da casa para sair pela porta da frente: a multidão caiu em cima delas soterrando as pobrezinhas com beijos nojentos e afagos asquerosos. Foi necessário que o chefe da segurança atirasse duas vezes para o alto para conter a avalanche de puxa-sacos sobre as crianças inocentes. O coronel se recolheu sem ninguém notar, mas recomendando ao companheiro de sempre que mandasse os guardas atirar para matar, “e cuidado com as coisas no escritório, eles vão tentar roubar tudo”. O coronel exagerava por gosto, sabia que suas precauções eram demasiadas, a sociedade conhecia seus limites ou pelo menos representava conhecer. E nesse tipo de ambiente não havia objetos pequenos, capazes de serem carregados num bolso, por exemplo, como os prosaicos cinzeiros, tudo era grande, desproporcional, impossível sair com qualquer coisa debaixo do braço, só se o tumulto se transformasse em saque, o que, evidente, não era bem o caso, apesar da cara de fome de pessoas que com certeza tinham mais de seis dígitos no banco. Mas, por via das dúvidas, o companheiro de sempre ordenou que guardas armados vigiassem todos os acessos ao interior do palácio, isolando os convidados ao salão de recepção, às varandas e aos jardins. Ele sabia muito bem que é entre a classe dominante que estão os grandes ladrões.

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