quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade

Passo a publicar a partir de hoje, e não sei bem o porquê, talvez seja uma espécie de homenagem às recentes eleições na Câmara e no Senado, um folhetim que escrevi, tempos atrás, inspirado na figura política do senador Antonio Carlos Magalhães. Antonio Carlos é, sem dúvida, a maior personagem da história política da Bahia e sua notória influência sobre as instituições do Estado e até mesmo a produção cultural e a exploração dos recursos naturais e outras potencialidades econômicas está se diluindo na dinâmica do processo político democrático, não demora e as novas gerações não saberão direito quem foi aquele a quem alguns chamavam de O Chefe, uns tantos de Cabeça Branca, outros de Toninho Malvadeza e todos de ACM.
Este folhetim, sem compromissos com veracidade dos fatos pois floresce num jardim de fraudes e mentiras, constrói, hora a hora, um hipotético tempo de dois dias e uma noite para contar o que poderia ter acontecido às vésperas da grande crise política nacional que tirou dos palácios oficiais e devolveu por alguns instantes ao canteiro do fundo do quintal um dos últimos líderes que tanto enlevam o espírito daqueles que ainda sobrevivem dos escombros ideológicos do autoritarismo.
Nenhum dos fatos aqui relacionados podem ser atribuídos a ACM, pois foram recolhidos como folclore político regional, não são reproduções de acusações legais ou mesmo de ordem política, são apenas constatações jornalísticas utilizadas para formular um folhetim literário, algo que possa ajudar ao grande público a entender como funcionam, na prática, os métodos do coronelismo como sistema político. As semelhanças, portanto, não são meras coincidências, são reflexos reais de uma imagem pública.
Eis, pois, A Flor da Maldade.


Capítulo um


O dia começou com as árvores passando devagar na janela do carro, o sol se desvencilhando da terra, o coronel olhando pro mundo e pensando em poder. A estrada se insinuava Mata Atlântica adentro, os raios de sol cravando luz no verde novo, o coronel reparou numa bicicleta serpenteando as árvores, os aros de metal das rodas refletindo pequenos flashs que pareciam vaga-lumes gigantes, um bom jeito de acordar para um dia decisivo, um dia de ouvir sim ou não. O senhor que sempre acompanhava o coronel também reparou nos efeitos de luz da bicicleta na mataria e comentou displicente “se eu tivesse um fuzil aqui, agora, mandava aquela porra pro caralho”. O coronel sorriu seu risinho de serpente e concordou:
- Exatamente, exatamente.
O carro ainda deslizou como uma nave estelar na tênue camada de lama asfáltica que havia custado toneladas de ouro aos cofres públicos até que parou no campo de pouso onde o pássaro de ferro prateado com a bandeirinha do Governo do Estado pintada no rabo da fuselagem passara a noite à espera do fim da tempestade. O coronel desceu com sua alegre opulência arrogante e atravessou o saguão sem olhar para os lados, olhos fixos no Learjat, apenas o rapaz do pequeno campo de pouso se aproximou sorrindo, cheio de explicações e amabilidades:
-O céu está limpo, chefe. Uma maravilha. O sol nunca mais vai se por...
O rapaz queria ser espirituoso, inteligente, o coronel seguiu direto para o jato, não disse uma palavra, subiu, cumprimentou piloto e co-piloto, se acomodou na poltrona e só então perguntou ao senhor que sempre o acompanhava:
-Por que ainda não demitiram esse bosta?
O jato rompeu a neblina do amanhecer e ganhou o céu rugindo como uma fera sideral. A pequena cidade da mata tropical, a pérola do cacau, ficou amarelando ao sol, igual a sempre, com suas casas mortas, com seu povo morto, com os mesmos chinelos, as camisas brancas esmaecidas, os olhos remelados de miséria, olhando a bola de fogo sumir no céu, a visita da esperança havia acabado e o mundo continuava gotejando nada.
O Learjat foi direto para as nuvens negras da tempestade que ainda se arrastava pelo ar desde a noite anterior. O piloto foi obrigado a voar baixo, a uns dois quilômetros da orla do mar, o jato tropeçando nos vazios de ar entre um morro e outro, igual a uma esburacada estrada no céu. O coronel se enjoou em segundos. O senhor que sempre o acompanhava também. Os pilotos se fingiram de macho e atravessaram a turbulência com um sorriso nos lábios. “O telefone funciona, isso é o que importa”, disse o coronel ao velho companheiro. Hora de exercitar poder. Em poucos instantes navegando os maus humores do céu, soube que a dissidência em sua base era inevitável. Mas tanto faz, sempre soube. Descobriu também que iria perder cargos e negociou pelo menos o silêncio da Imprensa. Se ninguém falar, ninguém fica sabendo. Chamou o presidente da República de inútil para um assessor direto, o que significa recado direto. Ameaçou outro pobre interlocutor não identificado com as mais sórdidas mesquinharias, as mais podres verdades. Mexeu com a alma de milhares de pessoas como se elas não tivessem vida, segregou cidades, liberou ordens de serviço para obras milionárias na imensidão do nada, o nada registrado em cartório.
O jato estabilizou outra vez sobre as ondas do mar, como se tivesse, afinal, alcançado uma rodovia asfaltada. Ele encerrou a sessão de telefonemas relâmpagos com uma ordem ríspida para que localizassem duas pessoas cujos nomes ninguém conseguiu ouvir. Desligou o aparelho e comentou com o companheiro de sempre, como se repetisse uma pérola original de prato de porcelana:
- O melhor é saber de tudo sem saber de nada.
Mais uns poucos minutos e estariam no grande aeroporto internacional da capital do Estado, onde um barulhento grupo de correligionários havia preparado uma manifestação popular espontânea de apoio à candidatura do maior homem do mundo ao Governo do Estado. As mesmas faixas de sempre, com tal lugar está com o coronel, tal coisa se deve ao coronel, todos saúdam o coronel, mas o coronel foi seco e direto:
- Não quero conversa com esses cornos.
O senhor que sempre o acompanhava sabia o que tinha a fazer, veterano especialista em manifestações espontâneas, organizadas ou não. O coronel acabou descendo do avião carregado pelos puxa-sacos, sem botar os pés no chão, como ele mais gostava, abanando para os cornos, sorrindo e espichando o olhar para os outros aviões comerciais, para as janelinhas, para os hangares, para os trabalhadores de apoio, para saber se aquele desembarque espalhafatoso num lugar quase vazio poderia impressionar alguém, influenciar em pelo menos dez ou vinte votinhos, quem sabe. Os puxa-sacos o depositaram no carro oficial, o senhor que sempre o acompanhava deu ordens ao pé de ouvido, bem como o bando adorava assistir, depois também entrou no carro e mandou o motorista arrancar a toda velocidade. Além da agenda mixuruca do dia nada tinham de objetivo para fazer, a não se tomar o café da manhã num lugar que entendiam como civilizado, a cozinha do palácio do Governo do Estado, mas a saída rápida do aeroporto, sem passar pelo saguão dos mortais, fazia parte do espetáculo, não há gesto gratuito em política profissional.

(Amanhã, capítulo dois)

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