domingo, 22 de fevereiro de 2009

A Flor da Maldade X

Eis o penúltimo.

Capítulo dez

O carro frio do chefe entrou no Palácio do Governo com a discrição de um trio elétrico. Todo mundo sabia que aquele era o carro usado quando ele saía para fazer algo que ninguém podia saber o que era. Noite fechada, fria e aconchegante, hora ideal para se pular o muro da moral. Os capachos adoravam aquele instante, pois era o momento de cumplicidade, o momento em que eles imaginavam ter alguma intimidade com o poder. Mas o poder destesta capachos, capachos são para se limpar os pés, nada mais. Ele entrou no Palácio sem olhar para ninguém, dando ordens, chamando gente urgente, reclamando do governador e exigindo uma ligação direta com o Planalto. O velho Companheiro de Sempre sabia que aquilo era apenas jogo de cena, continuou sentado no gabinete do governador, esperando o chefe acabar o teatrinho caseiro e se dedicar ao fundamental, o necessário, a longa sessão de telefonemas. A situação política nacional era, digamos, para dizer o mínimo, delicada. A dissidência no partido já ganhara a mídia, falava-se abertamente em candidatura ilegítima, em usurpação do direito partidário, em compra de votos do diretório regional. Eles precisavam de uma estratégia política imediata para enfrentar a evolução dos acontecimentos. Nem conversaram a respeito, a questão tornara-se mais do que evidente, a eleição estava claramente ameaçada. O chefe resumiu o problema: precisamos provocar um fato que desvie a atenção da opinião pública. Ou seja, a solução de sempre. A questão, entretanto, era saber qual o fato político que podia ser provocado com força suficiente para reverter o quadro a favor dos governistas. O companheiro de sempre sugeriu, meio de brincadeira, “que tal se você desse um chute nos colhões do Presidente?”
Os olhos da velha raposa brilharam como se tivesse visto uma brecha na cerca do galinheiro. A solução, sem dúvida. Atirar para dentro da trincheira, como se houvesse descoberto um traidor. Havia tantos, bastava escolher um. A confusão seria tamanha que ele talvez pudesse escapar no meio do alvoroço e ficar quieto à espera do referendo da candidatura na reunião da Executiva regional do partido. A indicação na reunião da Executiva nacional, o velho sonho do autoritarismo, para concorrer à cadeira mais reluzente da Nação, esvaneceria para sempre, mas não tinha importância. Ele sabia muito bem que não se faz apenas aquilo que se quer, mas sim o que se pode. Nada de emoções, isso é só a vida. Descartava a Presidência, mas assegurava o Governo do Estado. Refeito, como se afinal houvesse fisgado algo depois de longa espera, encheu-se de disposição no fim da noite para cancelar a gravação do comercial, a ida ao Parque de Exposições e a exclusiva na rede local. Iria dedicar-se apenas ao telefone, arma letal para quem a esgrime nos momentos adequados.
Os momentos adequeados, em tempo de crise, são todos. Despachou o companheiro de sempre, já tinha uma idéia clara do que precisava fazer, sua cabeça funcionava melhor sozinha, pelo menos assim era mais seguro. Deu mais de dez telefonemas e não atendeu a nenhum. Falou com dois Ministros, com os líderes de seu partido no Senado e na Câmara, com dois diretores de telejornal, dois editores-chefes de diários nacionais e com os três maiores candidatos de oposição à Presidência da República. A um ou outro confidenciou acordos políticos para futuras votações no Congresso, revelou sustentações econômicas para campanhas eleitorais, intrigou parceiros de ocasião e deu à luz a pelo menos três dos inúmeros casos de desvio de verbas públicas que jaziam nos arquivos públicos e na escuridão dos porões da memória oficial. Durante duas horas teceu com habilidade de velha rendeira uma rede de insinuações veladas e de denúncias diretas que abasteceria por alguns dias, ou noticiários, o grande monstro da mídia, sempre interessado em assuntos que possam se manter no ar como os ventos fortes que anunciam tempestade. Quando, afinal, foi dormir estava mais tranqüilo, o coração sustentado por pontes e membranas batia sem sobressaltos, ele pôde fechar os olhos e sonhar seus sonhos preferidos antes de sucumbir ao sono e ao cansaço. Antes de fechar os olhos, ainda pensou que só homens como ele podem se dar ao luxo de não ter pesadelos.
Então, viu-se coroado imperador de um tempo incerto, um quase deus atirando fogos de artifício com as mãos sobre a multidão extasiada à beira do palanque, o adolescente guerreiro a provocar desavenças irreconciliáveis na praça do Tribunal de Justiça, à esquerda, as casinhas das invasões do povo pobre na zona baixa da cidade, à direita, as residências da classe dominante na zona alta, de um lado os brancos aristocráticos, do outro os negros desvalidos, no meio, no centro de tudo, da cidade da magia e da alegria, ele, o adolescente arrogante, de olhos e cabeça fixos no único sentido que vale à pena –o futuro.

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